quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Soito e a Misericórdia


Soito e a sua Misericórdia


A vida da Misericórdia, em tempos idos, confundia-se com a vida da povoação: eram poucos os funerais em que os membros da Irmandade não participassem, já que a grande maioria dos habitantes eram irmãos e tinham, por isso, eles e o seu agregado familiar, direito a acompanhamento com bandeiras e estandartes, bem como a missas em sufrágio da sua alma, conforme obrigavam os compromissos de 1858, 1868 e 1914, que são os mais antigos chegados até nós.
A grande maioria dos pais de família eram irmãos, viviam religiosamente os deveres impostos sob pena de multa que podia ir de “1 Kg. de cera amarela a 2400 reis” conforme fosse o grau da falta verificada.
A missão desta Irmandade não se limitava ao “bem de alma” dos irmãos e familiares, tinha também como obrigação ajudar os mais necessitados o que fazia pagando livros, medicamentos e outros bens ás pessoas mais carentes e cujos valores são referidos nos livros de contas.
Todos os anos, no primeiro domingo de Julho, a Santa Casa fazia a “função” de Santa Isabel, (festa da visitação) que a Misericórdia organizava em cumprimento do expresso nos antigos Compromissos, onde para além do lançamento de foguetes participava regularmente uma banda de musica ou tambores vindos propositadamente para abrilhantar as festas.
Era, Santa Isabel, muito venerada pela Santa Casa, logo, todos os irmãos tinham a obrigação de respeitar e colaborar nos festejos comemorativos do aniversário.
Era também na tarde deste dia e todos os anos, que se procedia à eleição dos membros da Mesa e demais elementos necessários ao desempenho das várias tarefas, como o Irmão andador, o Irmão do mês e os irmãos que deviam levar as bandeiras aquando dos funerais que por força do Compromisso tinham obrigação de acompanhar.
As referências a esta festa deixam de aparecer por volta de 1935, sem que se perceba a razão de tão abrupto final.
A importância da Misericórdia, como Irmandade, decaiu, principalmente a partir do pós-Republica e, durante algumas décadas, a sua missão de “altruísmo” limitava-se a mandar rezar missas pelos irmãos falecidos, descurando a sua principal razão de existir que era o apoio aos mais necessitados: o valor dispendido com o espiritual ultrapassava largamente o que era canalizado para ajuda social.
Alguns anos depois da Revolução do 25 de Abril, esteve em risco de extinção devido à reduzida actividade que desenvolvia, isto apesar do elevado património rústico que possuía mas que estava na posse de algumas famílias desde há mais de dois séculos e que subdividiam pelos herdeiros como se fosse seu.
O rendimento de bens imóveis que em 1869, só de centeio, foi de 268 alqueires desceu em 1932, com cerca de 40 arrendatários, para 73 alqueires de centeio.
Em 1940, dos 41 arrendatários, a Misericórdia não arrecadou mais de 38 alqueires, pois já poucos pagavam as rendas.
Estou certo e já o Compromisso de 1858 se referia a tal situação, que muitos dos terrenos “imprazados desde tempos remotos,” se perderam como património devido à falta de documentos comprovativos da posse.
Em 1881 ainda existia o livro do Tombo onde estavam inscritos todos os bens da Misericórdia, mas desaparecido este, restaram os documentos oficiais que eram poucos e a consciência dos arrendatários, embora alguns, defendendo interesses inconfessáveis mas perfeitamente adivinháveis, não tivessem agido com a transparência desejável e subdividissem os terrenos em parcelas, tantas quantas os filhos, e sem que a Misericórdia fosse tida em conta neste emaranhado de interesses.
Tem sido difícil o acertamento com os arrendatários, já que alguns, apesar de em tempos terem pago a renda, chegaram a dizer que tinham terrenos da Misericórdia mas não diziam onde, e isto não é apenas do passado recente, pois já em 1920 havia arrendatários que pagavam a renda mas não diziam onde eram os prédios o que demonstra bem a sua posição obscura e condenável em relação ao assunto que até hoje nunca foi resolvido e duvido que algum dia o seja.
Há ainda quem, de má vontade ou mesmo má fé e apesar da ausência do pagamento de qualquer renda, continue a inviabilizar qualquer tipo de solução final para um processo que já se vem arrastando há décadas consecutivas o que é bem o espelho da vontade que alguns têm em aclarar, ou manter na penumbra, por conveniência, ainda que não manifesta, uma verdade incómoda.
A verdade é que a Misericórdia de hoje, também não pode provar para além dos documentos que possui e que são poucos, entretanto a verdade pessoal de alguns, acaba por se sobrepor à verdade colectiva de um povo e à memória das gerações que nos antecederam, resultando de tudo isto uma fotografia ao negativo da imagem do homem, que, por interesse pessoal, esconde ou omite os factos.

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